A propósito da pertinência da parceria proposta à Sociedade sobre criar uma grande frente de Saúde Pública através do SUS para o enfrentamento do problema do crack no Brasil duas notícias, veiculadas respectivamente no Jornal “O Estado de São Paulo” e na “Revista da Folha” de 18/09/2011 apontam para a urgência da efetivação dessas ações.
A faixa etária dos usuários de crack e o perfil do usuário mudou nessas últimas três décadas em que o mundo assistiu ao aparecimento dessa forma de uso da cocaína que, por ser passível de ser fumada, acrescenta gravidade substancial ao já altíssimo potencial de abuso que a cocaína na forma de sal apresenta. Além de crianças e jovens das metrópoles do Brasil e de outros países das Américas e do mundo, o uso por trabalhadores rurais do Estado de São Paulo que já foi matéria da mídia e, agora, aqueles do interior nordestino corrobora esse aspecto ubíquo que a dependência ao crack parece impor.
Nos últimos anos houve mudança drástica nos padrões de uso da cocaína quanto à via de administração: devido ao advento do crack, mudou da intranasal (cheirar cocaína) e/ou intravenosa (injetar) para a via respiratória, através do ato de fumar. As razões para este fato parecem estar embasadas no alto potencial de abuso desta forma de uso, em que os efeitos prazerosos buscados ocorrem mais rápida e intensamente quando comparados à via intravenosa. Acrescem-se ainda fatores ambientais e sociais, como, por exemplo, conveniência e facilidade de aquisição, não-necessidade da parafernália relativa às drogas injetáveis e segurança quanto à impossibilidade de transmissão de doenças por esta via. Essa mudança na condição de exposição é tão importante que é comum que se considere o crack uma droga diferente da cocaína.
O crack é a forma da cocaína que se presta a ser fumada. Trata-se da cocaína na forma básica – “base livre” da cocaína – que se volatiliza às temperaturas elevadas. Quando surgiu era oriundo do pó (cocaína na forma de sal – cloridrato ou sulfato) ou pasta bruta, encontradas na rua e às quais se adicionava uma base (por ex. bicarbonato de sódio) e um solvente para assim extrair a base livre. O nome crack derivada do ruído resultante da combustão, devido aos estalidos decorrentes da presença de solvente. No Brasil, as primeiras apreensões de crack datam do início da década de 90.
Sob a denominação de crack são vendidas várias formas de cocaína na forma básica, o que varia são os insumos utilizados na obtenção e as substâncias adicionadas para adulterar ou modificar características visuais. Por vezes essas manobras visam a criar um certo “marketing” , como é o caso da “oxi cocaína”, que foi alardeada como sendo uma nova droga, mas não passava do crack ao qual eram adicionados corantes para o diferenciar das conhecidas pedras que vão do branco ao marrom. São adicionados também adulterantes, substâncias colocadas com a finalidade de mimetizar os efeitos da cocaína (sendo os mais comuns a xilocaína, a benzocaína e a cafeína) e os diluentes (para aumentar o volume) como, por exemplo, talco, caulim, açúcares como manitol e amido. Encontram-se também no crack solventes orgânicos. Como esses solventes passaram a ter um controle mais rígido de comercialização, é comum que se utilizem aqueles disponíveis no comércio, como, por exemplo, a gasolina.
Estudo realizado por Fukushima (2010) com amostras de crack apreendidas na cidade de São Paulo mostrou que o teor de cocaína na droga encontra-se ao redor de 71%, sendo que os principais adulterantes são a xilocaína, benzocaína, cafeína, procaína e tetracaína e os solventes, contaminantes, ou seja, compostos não intencionais que podem estar relacionados a resíduos de processo de extração. O resultado das análises das amostras estudadas mostrou maior teor de cocaína em relação à cocaína comercializada na forma de sal (cloridrato ou sulfato), vendido como “droga de rua”. Esse estudo evidenciou também a presença de vários solventes, dentre eles o benzonitrila e benzeno. O conhecimento desses adulterantes é importante posto que é crescente o número de usuários do crack que ao fazerem uso desta droga, estão sendo expostos a essas substâncias presentes nas amostras, o que implica em danos outros que não só os causados pela COC, devido à interação entre os componentes.
Ultimamente tem sido apreendido juntamente com o praguicida “chumbinho” e há relatos de uso concomitante das duas substâncias para prolongar o efeito do crack. A informação, longe de ser anedótica, procede, pois da mesma forma que a cocaína, o ativo do “chumbinho” é inibidor da esterase plasmática, enzima que rapidamente metaboliza a cocaína (o que explica a rápida ação da droga) e que, assim sendo, prorroga o efeito da crack.
Outro importante problema de saúde pública é a exposição intra-uterina e a dos neonatos ao crack , o que cunhou a expressão “bebês do crack”. A exposição do feto durante a gravidez favorece a ocorrência de descolamento prematuro de placenta. Quando atinge a circulação do feto pode causar hipertensão, taquicardia o que aumenta o risco de lesões cranianas e hemorrágicas, relacionados com morte intra-uterina. Quando sobrevivem, o nascimento pode ser de prematuros ou crianças com baixo peso em relação aos que nascem a termo. Essas crianças podem apresentar retardo mental ou outros transtornos mentais e comportamentais. A Cocaina é secretada para o leite e está relacionada à intoxicação nos lactentes que se manifesta por irritabilidade, tremores, diarréia, vômitos e convulsões.
O uso compulsivo de crack compromete a dimensão individual e social do usuário, de maneira que os vínculos sociais estáveis e normalizados se fragilizam e rompem-se, o que acaba por marginalizá-lo progressivamente, tanto no contexto microsocial como, por exemplo, redes de uso local, quanto macrosocial como, por exemplo,comunidade e sistemas de serviço.
O crack, à semelhança de outras drogas, é de difícil tratamento. O Grupo de Trabalho formado no Ministério da Saúde- Coordenação Nacional de Saúde Mental ao elaborar texto preliminar sobre Abordagens Terapêuticas a Usuários de Cocaína/Crack no Sistema Único de Saúde salientou “a imprescindibilidade de abordagens de caráter intersetorial e de serviços de saúde facilitadores da construção do cuidado em rede”. Reconhece o equívoco que há ao se homogeneizar usuários de crack, o que fica evidenciado nas notícias em manchete que mostram a heterogeneidade populacional entre crianças em situação de rua que buscam estados alterados de consciência como alternativa à realidade adversa e trabalhadores rurais, que remontando à dizimação da civilização Inca por Pizarro, encontram na droga, que lhes mitiga a fome, o combustível para o trabalho inóspito.
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