A cultura do efêmero e a sobrecarga ecológica

A cultura do efêmero e a sobrecarga ecológica

A cota de recursos e serviços ecológicos da Terra para 2013 se esgotou no dia 20 de agosto. A data assinala o Dia da Sobrecarga Ecológica, marco que evidencia anualmente quando o consumo humano dos recursos e serviços naturais, a pegada ecológica, ultrapassa a capacidade de renovação do planeta, a biocapacidade global. O cálculo foi divulgado pela Global Footprint Network (Rede Global da Pegada Ecológica), organização não governamental (ONG) parceira da rede WWF.

A sobrecarga ecológica é calculada pela contabilização do numero de dias para os quais a biocapacidade da Terra é suficiente para prover a pegada ecológica da humanidade para aquele ano. É medida em hectares globais, unidade de área padronizada pela produtividade média global, refletindo o impacto ambiental exercido pelo homem. De modo que: Dia da Sobrecarga Global = (Biocapacidade Global / Pegada Ecológica) x 365.

Os cálculos anuais vêm demonstrando que as demandas da humanidade relativas à natureza estão em nível insustentável desde a década de 70, ou seja, desde então um ano não é mais suficiente para prover as necessidades anuais da população global, apesar da sofisticação tecnológica que ajudou a expandir a produtividade biológica. E a tendência é de alta, segundo projeções se o estilo de vida continuar no ritmo atual o homem precisará de duas Terras antes de 2050.

O déficit ambiental vem sendo mantido pela exploração excessiva dos recursos e serviços naturais e pelo acúmulo de resíduos no ambiente, particularmente os gases de efeito estufa, situação que só pode ser mantida por um curto espaço de tempo, até que o ecossistema entre em colapso.

Os impactos do alto custo ecológico já são visíveis por meio de problemas atuais como: escassez de água, desertificação, erosão do solo, redução da produtividade de terrenos agrícolas, desflorestamentos, extinção acelerada de espécies, colapso pesqueiro e mudanças climáticas globais.

Atualmente, mais de 80% da população mundial vivem em países que usam mais recursos do que seus próprios ecossistemas conseguem renovar. Os países devedores ecológicos já esgotaram seus próprios recursos e têm de importá-los. No levantamento da Global Footprint Network, seriam necessárias quatro Itálias para abastecer os italianos e 7 Japões para abastecer os japoneses.

O Brasil aparece ao lado das nações que ainda são credoras ambientais, com reservas naturais abundantes. Esse quadro, porém, está mudando, pois a pressão sobre as reservas brasileiras vem aumentando devido ao aumento populacional e as alterações nos padrões de consumo.

A solução para ambientalistas está na sociedade como um todo que precisa repensar seu estilo de vida, sendo a educação e a informação instrumentos importantes para a mudança de valores. Os governos têm papel fundamental na redução dos impactos do consumo sobre os recursos naturais, pela implantação de políticas públicas que envolvam, por exemplo, a oferta de transporte público de qualidade e menos poluente, a construção de ciclovias e o estímulo ao consumo responsável. Os cidadãos podem ajudar, reduzindo o desperdício de água e energia, reduzindo o consumo de carne bovina e de alimentos altamente processados, usando mais transporte coletivo e adquirindo produtos certificados.

Mas, será esta uma tarefa factível?

A atual sociedade de consumo, fase tardia do capitalismo, à qual se tem chamado capitalismo pós-moderno ou supercapitalismo[i], sociedade na qual parece não mais existir a presença de um superego dominador (ainda mais depois de ela haver deixado a moralidade cristã rumando a um secularismo – no século XIX, Nietzsche já registrara que Deus estava morto), sucede a sociedade de produção dos tempos primeiros do capitalismo. Wladimir Safatle, no artigo Um supereu para a sociedade de consumo: sobre a instrumentalização de fantasmas como modo de socialização[ii], comenta que a lei moral que sustenta a disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta econômica é uma figura do supereu, e, assim, a economia libidinal do capitalismo como sociedade de produção não seria possível sem o desenvolvimento de uma civilização neurótica que só poderia pensar seus processos de socialização através da instrumentalização do sentimento de culpa. Portanto, ao invés da sociedade da produção, devemos compreender a contemporaneidade e seus traços a partir da temática da sociedade do consumo, no sentido de que problemas vinculados ao consumo acabam por direcionar todas as formas de interação social e de desenvolvimento subjetivo, bem como é o incentivo ao consumo que aparece como problema econômico central e, portanto, também ambiental.

O mundo capitalista do trabalho esteve vinculado à ética do ascetismo e da acumulação. Por outro lado, nosso presente mundo do consumo demanda uma ética do direito ao gozo. O discurso do capitalismo contemporâneo precisa da procura ao gozo que “impulsiona a plasticidade infinita da produção das possibilidades de escolha no universo do consumo”, disse o citado Safatle. Nosso mundo atual precisa da regulação do gozo no interior de um universo mercantil estruturado, porque precisa vender mais e mais. Ele precisa da instauração daquilo que Jacques Lacan chamou de um “mercado do gozo”, gozo disponibilizado através da infinitude plástica da forma-mercadoria. Insista-se: ponto crucial na contemporaneidade, em oposição à fase inicial do capitalismo, na era da produção, é que hoje mais do que nunca o gozo é permitido e estimulado.

Lacan tem clareza da alteração dos processos de socialização na contemporaneidade e de seu impacto na estruturação do superego. Ele realça o elevado número de conseqüências psicológicas derivadas do declínio social da imago paterna, provocado pelo retorno sobre o indivíduo de efeitos extremos do progresso social como a concentração econômica e os desastres políticos. A questão do desaparecimento da autoridade paterna é muito devida ao impacto, no interior da família, do desenvolvimento impessoal da grande corporação burocrática. “Impacto que faz com que a figura paterna (o que não é o mesmo que função paterna) seja cada vez mais ausente,

humilhada e postiça”. Porém, o declínio da figura paterna não equivale a decréscimo da pressão do superego e de suas consequências. Lacan explicou que o declínio da imago paterna abria espaço para o advento de figuras fantasmáticas de autoridade que se assemelhavam ao pai primevo do mito freudiano de Totem e Tabu; ou seja, ao pai-senhor do gozo que pauta suas ações pela procura incessante da satisfação imediata. Então, hoje, os processos de socialização não mais estão associados a mecanismos de repressão, mas, pelo contrário, a mecanismos que cobram de maneira completa a gratificação irrestrita (de interesse capitalista). Mais do que proibir a permissividade como o antigo, esse novo superego inverteu o mandamento e agora a oferece, a determina, fazendo disso sua autoridade em conluio com as necessidades do consumismo e do capitalismo. E é melancólico recordar que a idéia-tese de uma sociedade mais permissiva e menos neuroticamente vigiada e proibida por um superego conservador e ultra-moralista emergiu ao longo dos movimentos contra-culturais da década de 1960, particularmente após os acontecimentos radicais nas grandes capitais da Europa em 1968. Essas agitações sociais e seus novos valores foram logo incorporados nos anos seguintes pelo inteligentíssimo capitalismo e adequadamente empacotados em sua própria ideologia, agora de um aparente liberalismo e não mais de autoridade castradora.

Se Deus estava morto tudo então estava permitido, teria dito Fiodor Dostoiévski[iii]. O filósofo Slavoj Zizek entende que numa situação em que tudo é permitido, acontece aumento em vez de diminuição da auto-regularão. Para ele, na sociedade moderna, sobretudo do final do século XIX ao fim da Segunda Guerra, as pessoas eram regidas pela pressão de se ser um bom cidadão a até mesmo sacrificar a vida à causa da nação: no ocidente ser um bom democrata, no bloco oriental ser um bom comunista. Assim, havia um superego de uma autoridade do tipo paterna correspondente à figura freudiana de pai edípico, que assegura que o indivíduo aja de modo aceitável socialmente e produtivo (esse modo como até então tínhamos entendido, isto é, pelo menos aqueles que nesse período já eram adultos e estavam formados – de fato, resta perguntar como os que nasceram depois e hoje são os jovens adultos entendem o que é ser social, socialmente aceitável, produtivo…). Para Zizek, concordando com Lacan, a sociedade no capitalismo tardio passou a possuir (escolheu?) um superego representado por aquele pai primitivo, de gozo obsceno. As ideologias dominantes hoje hiper-determinam o gozo: gozo sexual, gozo consumista, gozo de poder, gozo de ódio (vejam-se os grandes rituais de ataque e zombaria desenvolvidos por torcidas de futebol em relação às torcidas adversárias), e o gozo espiritual de realizar-se a si mesmo, de tal sorte e tanto que o próprio gozo tornou-se algo imposto e oprime, escravizando. Gozar, ao invés de aliviar pressão, passou a gerá-la: a pressão da busca de novo gozo, num interminável sem fim (pleonasmo proposital), mas que tem o vantajoso efeito colateral para o sistema de garantir consumo.

Contudo, a ordem – goza! é impossível de ser sempre e plenamente satisfeita. E esse é o problema. O superego não tem conteúdo normativo, orientador, educativo. Não explica como gozar ou qual o objeto apropriado ao gozo. Somente diz um “Goza!” sem qualificações, um puro “não ceda em seu desejo”. Ele diz faça o que você quer porque é o seu desejo, mas faça!, ou seja, ele atribui ao sujeito a opção da escolha por gosto próprio e, ao mesmo tempo, impõe que o desejo seja feito. Portanto, ele parece até um superego edípico, mas que se modernizou, pedagogizando-se: a natureza tola deste puro gozo fica estampada se considerarmos que toda escolha empírica de objeto é inadequada a um gozo que procura afirmar-se em sua pureza de determinações, em sua independência quanto a toda e qualquer fixação privilegiada de objetos. Ele só pode se realizar no “infinito ruim” do consumo e da destruição incessante dos objetos, que nada mais faz do que atualizar um excedente de gozo, e continuamos a concordar com o Safatle.

Quando assistimos ao frenesi das pessoas comprando num Shopping Center não podemos deixar de pensar no que escreveu Freud em Totem e Tabu: “os integrantes do clã, consumindo o totem, adquirem santidade; reforçam sua identificação com ele e uns com os outros. Seus sentimentos festivos e tudo que deles decorre bem poderiam ser explicados pelo fato de terem incorporado a si próprios a vida sagrada de que a substância do totem constitui o veículo”[iv], ou seja, o pai primitivo foi substituído pelo totem.

Talvez prossigamos dando origem a substitutos e talvez façamos isso hoje numa mega-escala, potencializada por toda a agressiva mídia, em proporções e intensidade gigantescas. As massas dirigindo-se religiosamente aos santuários Shopping, ordenados todos como cordeiros (quiçá sob o comando de uma “mente coletiva”, expressão de Freud), para a refeição do objeto sagrado, bem de consumo, foco do desejo fálico de cada qual, veículo do gozo, representam, sem dúvida, a reedição ad eternum do gesto e depois do rito dos irmãos da horda primeva, sem que disso hoje se dêem conta, ou melhor, sem que conta se dêem conscientemente.

O totem está presente nos rituais de passagem. No ritual de passagem há morte de algo para que outro algo venha. No ritual, quando do estádio seguinte, há a imposição de novos tabus, novas regras. A ida ao Shopping é um ritual, e talvez de passagem, na medida em que ao ir e fazer uma compra eu saio de um estádio, o de não consumidor, ou de não consumidor daquilo, e, portanto, não incluído em dado grupo (clã), para o de membro do grupo do produto tal ou da marca tal, pelo menos será assim que pensarei (e com isso me libertarei da vergonha da exclusão e do afeto ruim a ela vinculado). Saio da condição de não ter e ser excluído daquilo para a de ter e ser incluído, e isso me impõe novas regras, como, por exemplo, a de ser fiel àquele produto (ao emblema de magnificência[v]), uma forma de pacto religioso, divulgá-lo e cultivá-lo (enquanto me interessar, enquanto interessar ao meu gozo) como um novo totem – o totem dentro do totem…

De fato, ao consumirem os produtos totêmicos (totêmicos para cada qual) do totem maior Shopping Center, as pessoas se santificam na impressão de satisfação, gozo, pelo bem adquirido, reforçam seu senso de pertencer àquele seleto clã ou a uma forma diferenciada de ser, fic

am em festa por algum tempo (enquanto dura a permanência do insignificante[vi]), o júbilo pela posse do bem acalentado, seu gozo, aquilo que ele representa ou significa, enfim, parece que absorveram a substância do totem e agora estão revitalizadas, isto é, reinstalaram em si a vida, são de novo alguém, porque alcançaram o bem mágico e desejado.

Para nós, hoje, consumir (o consumo como compulsão, já no muito além das necessidades verdadeiras) parece ser, de forma quase inquestionável e irreversível, uma afirmação cultural. Paulo Cunha entende que a cultura é ferramenta para a manutenção dos valores sociais, transmitidos pela mãe ao bebê, e também é a base para a identificação de indivíduos de um mesmo grupo social. A contemporaneidade ampliou esta relação através dos códigos que regem o pertencimento aos grupos, cada vez mais midiatizados e vendidos abertamente pela comunicação de massa e valores inclusos no consumo. Quanto maiores são os grupos sociais, as cidades, os países, maiores são os esforços para fazer parte e não se ficar à margem da sociedade. Pertencer significa ter uma identidade comum, avalizada, menos vulnerável a críticas e ao abandono – não se perder na multidão, tornar-se alguém…[vii]



[i]Robert Reich, Supercapitalismo: como o Capitalismo tem transformado os Negócios, a Democracia e o Cotidiano. Rio de Janeiro, Editora Campus/Elsevier, 2008. 304 p.

[ii] Vladimir Safatle. (Org.)Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise. São Paulo: Unesp, 2003. O artigo citado: Um supereu para a sociedade de consumo: sobre a instrumentalização de fantasmas como modo de socialização pode ser lido em http://www.oocities.org/vladimirsafatle/vladi073.htm.

[iii]  Slavoj Zizek. Vivendo no fim dos tempos. [trad. Maria B. de Medina] São Paulo: Boitempo, 2012. p. 105

[iv]Sigmund Freud. Totem e tabu. Obras completas v. XIII. Ed. Standard Bras. Obras Psicol. Completas S. Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996.  p. 144.

[v]Zygmunt Bauman. A arte da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar [Trad. Carlos Alberto Medeiros], 2009. p. 34.

[vi]Roger Caillois. In:MAFFESOLI, Michel. O mistério da conjunção – ensaios sobre comunicação, corpo e socialidade. 2ª. ed.Porto Alegre: Editora Sulina, 2005. p. 48.

[vii]Paulo R. F. da Cunha. O espelho e a sociedade pós-moderna. Disponível em: http://centropsicanalise.com.br/publicacoes/.

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